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Dalton Macambira (*)

O governador Wellington Dias enviou projeto de lei, devidamente aprovado pela Assembleia Legislativa, para antecipar o Dia do Piauí para a próxima sexta-feira, 15 de maio, apenas para este ano. Como fica a história diante desse ato? Como reagem os historiadores? Qual a justificativa para a antecipação? O povo piauiense não diz nada?

O tempo e o espaço são importantes porque revelam em que circunstâncias os fatos históricos ocorreram e como eles ajudaram na compreensão do passado e, a partir de sua interpretação, do nosso presente também. Por essa razão, determinados acontecimentos importantes devem ser marcados pela aprovação de um dispositivo legal que obrigue os governos, para além de simples atos comemorativos, a expor para a sociedade aquele evento, o que permite manter viva a memória e o debate sobre aquela data.

O Piauí, na primeira metade do século XIX, tinha grandes fazendas de gado, no centro sul e sudoeste, chegando a ser considerado, no período colonial, o curral e o açougue do Brasil, fornecendo carne, couro e força motriz para o Maranhão e as regiões litorâneas do Nordeste açucareiro, além de toda área da mineração das chamadas “minas gerais”. No norte da província havia um pulsante comércio de Parnaíba com a Europa. As principais vias de escoamento da produção, além das estradas carroçais, eram os rios Paranaíba, Balsas e São Francisco.

Pela relevância desse fato histórico, foi aprovada a Lei nº 176, de 30 de agosto de 1937, instituindo que a data magna do Piauí deveria ser o dia 19 de outubro, em referência a proclamação de nossa independência de Portugal, sob a liderança do rico comerciante e fazendeiro Simplício Dias da Silva e do juiz João Cândido de Deus e Silva (inspirado pelas ideias republicanas que vinham do “velho mundo”), em 1822, pela Câmara Municipal de Parnaíba. No entanto, esse fato isolado é absolutamente insuficiente para explicar todo o processo de independência.

A nossa historiografia relembra que, mesmo após o 7 de setembro, como a separação do Brasil de Portugal ainda estava em curso, sobretudo no norte e nordeste do país, a reação portuguesa foi enviar tropas de Oeiras, lideradas pelo comandante João José da Cunha Fidié, para sufocar a rebelião, o que levou os insurretos parnaibanos a se refugiarem em Granja, no Ceará, enquanto a vila litorânea era ocupada e submetida. Esse

episódio fragilizou a narrativa relacionada a data de 19 de outubro de 1822. Entretanto, não se pode deixar de reconhecer que ocorreu em Parnaíba o primeiro ato em nome da independência do Piauí.

Com o avanço do processo de independência pelo país, especialmente no vizinho Ceará, um grupo liderado por Leonardo de Carvalho Castelo Branco, um dos integrantes do grupo pioneiro de Parnaíba, que havia se refugiado fora do Piauí, invade e ocupa Piracuruca no dia 22 de janeiro de 1823, o que se constituiu em um evento de destaque e que marcou a retomada da luta separatista.

Nesse contexto, associado a ausência da maior parte das tropas de Fidié, que se encontrava em Parnaíba, precipita-se a tomada do poder por um outro grupo, liderado pelo Brigadeiro Manuel de Sousa Martins, expressão da aristocracia rural piauiense, que proclama a independência em praça pública e declara fidelidade a D. Pedro de Alcântara, no dia 24 de janeiro de 1823, em Oeiras. O seu conservadorismo e sua inclinação pela monarquia, conduzirá o futuro Visconde da Parnaíba a governar o Piauí por 20 anos, até 1843, o mais longo governo da história do Piauí.

Avisado dos acontecimentos, Fidié, que estava em Parnaíba, aguarda apoio de tropas do Maranhão, fiéis ao rei de Portugal, para decidir retornar para Oeiras, enquanto o governo provisório, comandado por Sousa Martins, espera apoio dos rebelados do Ceará para enfrentar o comandante militar português. Sem que os reforços sejam confirmados, de parte a parte, pelo menos na quantidade e na qualidade esperadas, as tropas portuguesas, em menor número, mas bem mais armadas e treinadas, reconquistam Piracuruca, sem qualquer resistência, e foram encontrar a sua primeira e verdadeira batalha às margens do Jenipapo, próximo a Campo Maior, em 13 de março de 1823.

A batalha do Jenipapo foi o maior conflito armado das lutas pela independência do Brasil. Fala-se em mais de 4 mil combatentes, com centenas de mortos e feridos, a maioria de piauienses, maranhenses e cearenses que lutavam pelo movimento separatista. Mesmo com a vitória das tropas leais a Portugal, suas baixas foram consideráveis, sobretudo depois do conflito armado, pois o inimigo trocou a estratégia e saiu do confronto aberto, que lhe causou a derrota no primeiro momento, para a tática de guerrilha, o que levou a deserções e perda de armamentos e muitas vidas e obrigou as tropas de Fidié a se refugiarem no Maranhão, de onde não mais voltaram. Nesse caso, cabe bem a expressão: ganhou a batalha, mas perdeu a guerra.

Nesse sentido, além do 19 de outubro, ao conhecer a história do Piauí, é possível destacar outras datas, igualmente importantes, no processo que revelou a contribuição do nosso estado para a independência do Brasil.

Para a história, portanto, a antecipação da data não causa qualquer prejuízo e, para os historiadores, ajuda na desconstrução da visão tradicional de que a história é feita de heróis e datas, pois não é, mas sim de processos complexos e contraditórios, de idas e vindas, de avanços e retrocessos, que não se limitam a vontade individual de certos homens, mas é sempre resultado de ações coletivas que envolvem os mais variados interesses políticos e socioeconômicos.

Pode-se afirmar que a justificativa para a antecipação da data do Dia do Piauí, além de contribuir para que a sociedade conheça um pouco mais da nossa história, influencie também na elevação da consciência de todos quanto a importância do distanciamento social neste momento em que o país vive a maior crise sanitária em mais de um século. Há 102 anos a “gripe espanhola”, que começou nos EUA, vitimou mais de 50 milhões de pessoas no mundo e no Brasil, em poucos meses, levou à morte cerca de 35 mil, inclusive o presidente Rodrigues Alves que, reeleito para um segundo mandato (1918), não conseguiu tomar posse (1919).

A antecipação do Dia do Piauí de 19 de outubro para 15 de maio deste ano irá contribuir no combate à pandemia do coronavírus, pois, com o feriado prolongado, as pessoas ficarão mais distantes ajudando a reduzir a taxa de contaminação e a curva de expansão da doença. Assim, o que a economia vai perder agora pode recuperar após o fim dessa crise, com a retomada da atividade econômica e a reabertura geral do comércio em que o calendário terá no mínimo um feriado a menos.

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(*) Dalton Macambira é professor do Departamento de História da Universidade Federal do Piauí.

Fonte: Jornal O Dia, edição de 15/05/2020, p. 5.